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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Inocencia ou Ingenuidade? (19/02/12)

Não sei como expressar o que estou sentindo, mas é uma tristeza profunda. Uma dor na alma que se manifesta como um aperto no coração e uma vontade incontrolável de chorar, como se as lágrimas lavassem a tristeza.

Acabamos de voltar do jantar em Victoria Falls, no Zimbabwe, o lugar mais turístico do país. Esse foi nosso segundo dia aqui e fomos muito bem tratados o tempo todo por todos. O clima aqui é bem mais leve que na África do Sul, em termos da violência, mas tem algo aqui bastante denso que ainda não consegui entender o que é.

O turísmo é a única fonte de renda dessa região e desde 2002, quando Mugabe, o presidente do país desde 1980, resolveu fazer uma reforma 'agrária' tirando as terras dos brancos para dar aos negros, pessoas foram assassinadas, e no fim muitas terras ficaram sem produzir, pois os novos proprietários não tinham os animais ou maquinários necessários.

A partir daí, a situação política e econômica desse país piorou muito, ficando bastante instável, o que espantou o turismo de Zimbabwe para a Zambia, que está a uma ponte de distância daqui, e deixando as pessoas que vivem do turismo aqui, com poucos recursos ou nenhum.

A economia quebrou de vez em 2009, a inflação foi as alturas e as pessoas simplesmente passaram a adotar o dolar como sua moeda local e desde então, disseram que tem melhorado, tanto o turismo, quanto o país, porém temos ouvido outros lado dessa história. Para alguns, principalmente os desempregados, com o dollar tudo encareceu muito e ficou bem mais difícil sobreviver.

Por isso tudo, as coisas por aqui são bem caras para os turistas, além de ser tudo cobrado em dolares, as famílias dependem do turismo. Tem muita oferta de artesanatos e passeios, por volta de 20 empresas de turismo, e as pessoas te abordam insistentemente nas ruas para comprar coisas e fazer passeios. Uma sensação super desconfortável, porque sabemos que precisam do turismo, ao mesmo tempo, não podemos comprar muito e nem ajudar a todos.

Ontem fomos ver as cataratas que são um espetáculo natural, as águas caem com força e graça num Canyon de mais 1km de comprimento, coberto por florestas e vida animal. Impressionante! Nas cataratas lavamos a alma e entregamos a mãe natureza nosso amor e gratidão por tudo o que estamos vivendo.

Hoje resolvemos fazer uma caminhada pelos arredores. No caminho paramos para admirar uma árvore gigante e bem antiga, é uma Baoba, com mais de 1000 anos de idade. Essa árvore é bem comum aqui suas folhas são usadas para cozinhar, seus frutos azedos são adorados pelos elefantes, assim como seu tronco, que os abastace de água para suas longas caminhadas.

No meio de nossa caminhada, um garoto nos chamou e começou a conversar com a gente e nos acompanhar no percurso. Não gosto muito desse tipo de atitude, pois me sinto invadida na liberdade de escolher ou não essa situação, por isso no início fiquei mais calada. Bongo é o seu nome, ele nos contou que vendia esculturas de madeira para os turistas lá nessa árvore, perguntou se não queríamos comprar coisas ou doar roupas pra ele e começou a nos perguntar várias coisas sobre a nossa viagem e nossas vidas.

Chegamos até a árvore e resolvemos seguir nossa caminhada pela beira do rio Zambezi, o 4º maior rio da Africa, o rio que desemboca nas cataratas. Nos despedimos dele, agradecemos a compania e seguimos viagem. Uns 5 minutos depois lá estava ele novamente atrás de nós. Ficamos meio ressabiados no início, sentíamos que queria algo de nós, mas depois eu comecei a conversar com ele e decidimos que íamos considerá-lo como um guia e dar uma ajuda financeira pra ele no final.

O passeio pela margem do rio é muito bonito, repleto de vida animal e vegetação. As águas calmas não aparentam que há poucos metros se transformarão numa imensa catarata... vimos macacos, passarinhos e batemos um bom papo com o Bongo.

Ele nos contou mais sobre sua vida e seu país, e nós falamos mais sobre o Brasil. Ele mora com sua esposa, que não trabalha, e eles ainda não tem filhos, mas querem ter o ano que vem. Ele tem 23 e sua esposa 20 anos, é o caçula de 3 irmãos de sangue e um irmão de alma, com quem mora hoje. Me disse que pra ele é muito difícil conseguir dinheiro aqui e quando consegue, logo compra comida pra garantir que terão o que comer. Ele nunca saiu de Victoria Falls e quando eu perguntei se tinha algum sonho, me disse que não.

Ele foi nos mostrando o caminho e parecia que estava curtindo fazer o papel de guia. Ele se mostrou uma pessoa simpática, de sorriso fácil, mas com uma certa mágoa no olhar. Falou que nos levaria até um mercado de artesanato, onde seu irmão de alma vende seus produtos. Comecou a nos indicar o caminho, e assim que vimos a polícia turística, ele nos convidou a pegar um atalho.

Entramos em uma trilha no mato, num lugar pra nós desconhecido e fora da rota turística. Bongo comentou que a policia turística as vezes afungentava ele de seus "clientes". Eu entendi uma coisa completamente diferente, que Bongo queria se afastar de outros guias oficiais, porque eles queriam os clientes para eles e tentavam afugentar Bongo.

Será que era mesmo um atalho, ou estava nos afastando da policia? Foi o que o Thomas se perguntou. E eu, na mais completa ingenuidade, lhe disse que poderíamos dizer não (pensando num outro guia que nos quisesse roubar dele).

Mais uma pessoa apareceu atras de nós, e começou a puxar papo. Eu já pensei que era o guia oficial querendo nos roubar de Bongo, tendendo a protegê-lo. Alguns metros adiante, apareceram no mato alguns barracões de sucata, e ao lado algumas pessoas cozinhavam no chão em uma lata. Por um instante, Thomas pensou: "pronto, agora caimos em uma emboscada".

Logo vimos o artesanato no chão de terra batida dentro dos barracos... era o mercado. Foi um certo alívio pro Thomas, mas ainda havia uma certa tensão no ar. E eu, num outro mundo sem perceber nada disso, achando o máximo conhecer mais do mundo de Bongo e da realidade local.

O irmão apareceu, seguido de muitos outros irmãos. Eu quis comprar algo pra ajudar, mesmo sabendo que não podemos carregar e que precisamos economizar... as vezes me sinto coração mole nessas horas.

Saímos de lá e ele nos perguntou se queríamos conhecer onde ele morava, chamou o lugar de compound, onde as pessoas que trabalham lá vivem. Eu disse que sim, claro, quero conhecer a realidade daqui e não ficar só no turismo, mas quando estávamos a caminho, a polícia turística parou ele e ficou um tempão conversando em Ndebele, uma das línguas nativas locais, além do Shona e outras.

Não estava entendendo o que estava rolando, e comecei a fazer um sinal para o Bongo de vamos... pensei em dizer para o policial que éramos amigos do Bongo.

O Thomas logo entendeu tudo e achou uma excelente oportunidade para sair da situação, que ficou bastante desconfortavél. Ficamos sem saber o que fazer e resolvemos nos aproximar dele e do policial para perguntar o que estava acontecendo.

O policial nos perguntou como tínhamos conhecido ele e começou a nos falar que ele não era um guia autorizado e que não recomendava que nós seguíssemos com ele, pois já tinham sido reportados casos de assalto, onde um sujeito não conhecido passava a acompanhar turistas, levava eles pra um lugar mais vulnerável, enquanto combinava com outras pessoas um assalto, quando o assalto acontecia ele ía embora, e depois dividiam tudo o que foi roubado. Inclusive houve um caso assim ontem.

Meu coração apertou no momento em que olhei para Bongo, seu olhar de tristeza e humilhação mostrava a gigantesca ditância que agora nos separava e interditava essa relação. Ele tomado como suspeito e nós como possíveis vítimas... e mais, me dei conta que internamente pra mim, ele ocupava um papel de vítima e nós de possíveis bem-feitores.

Uau, que ficha caiu. Me colocar nesse lugar de possível bem-feitora, me vulnerabilizou tremendamente, porque me cegou para outras possibilidades. Me colocou, inconscientemente num papel de 'superioridade'. Me pergunto: Será que realmente alguém ajuda alguém sem se colocar num papel de 'superioridade' e poder?

Esse mecanismo de separar e classificar, que temos em nós desde que a humanidade é humanidade, as vezes consciente e outras inconsciente nos tira do lugar de iguais, fragmenta e nos impede de viver como iguais.

Voltando a nossa história, o Thomas me sinalizou pra irmos embora... queríamos ajudar e ficamos sem saber como lidar com o que estava acontecendo. Decidimos nos aproximar dele para nos despedir e dizer que sentíamos muito. Demos uns trocados em agradecimento a compania e a ajuda e partimos com o policial.

Ele também era uma pessoa bastante humilde, com um uniforme surrado e cuja a única identificação era uma bata, um pouco suja dizendo "Victoria Falls Turism Police". Ele nos explicou cuidadosamente um pouco mais da situação e pediu pra que fossemos cuidadosos.

A impressão que ficou, observando estas duas pessoas em posições tão distintas, mas em condições tão parecidas, é que os papéis poderiam facilmente ter sido opostos. Muitos aqui navegam essa fina linha entre a miséria e a pobreza e as vezes o mais simples dos empregos é um grande luxo, enquanto a nossa volta alguns turistas com suas cameras enormes nos pescoços, olhando vitrines de lojas, a caminho dos seus hotéis 5 estrelas. Quantos contrastes...

Sentamos pra beber algo, o Thomas dizendo que havíamos sido ingênuos e estávamos completamente vulneráveis nas mãos de alguém que nunca havíamos visto antes, levando a gente pra um lugar que não conhecíamos... ele tem razão, mas eu não aguentei de tristeza e fui pro banheiro chorar...meu coração tava apertado demais sem poder fazer nada. Sentindo por um lado a injustiça social que existe no mundo e por outro uma impotência de não poder ajudar todo mundo.

Não sei se fizemos certo ou não, nem existe certo ou errado, fizemos o que sentimos que precisávamos fazer, mas com certeza agimos em auto-defesa, mais pelo medo que pelo amor, e acho que isso me deixou despedaçada, principalmente quando lembro-me do olhar de Bongo.

Mas até que ponto queremos nos arriscar e nos expor a possíveis perigos sem necessidade?

Essa é uma reflexão sem fim, e talvez as vezes sejamos ingênuos sim, mas queremos muito manter sempre a inocência e poder confiar nas pessoas e nos entregar a vulnerabilidade de quem somos, sem ser ingênuos. Acho que ainda estamos em busca desse lugar.

Mas como dizia o Rebbe Lentzner: "É preciso ter um coração partido para se ter um coração inteiro". Meu coração fica mais inteiro a cada dia.

Com o coração partido e inteiro,

Narjara e Thomas

6 comentários:

  1. Fiquei aqui sentada pensando o que ia te escrever. Lido todos os dias com minhas crianças, tentando descobrir uma maneira de ajudá-las, sem muito sucesso e descobri que me sinto como você. O que você disse é verdade, me coloco numa posição superior, que estou tentando fazer o "bem", e todos os dias fico triste, porque não consigo ajudá-los por mais que eu tente. Vou continuar te seguindo. Adoro você e sinto muito por termos perdido o contato. Boa viagem, e se puder me diga o que fez nos últimos tempos (se tiver um tempinho, claro!) Beijos pra você e para o Thomas.
    Ivani!!!

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    1. Oi Ivis, quanto tempo!!! Como você está? Obrigada por compartilhar sua reflexão e aprendizados. Tenho aprendido tanto por aqui... estou fazendo o possível pra compartilhar o máximo, mas tem algumas coisas que são incomunicáveis. Vamos encontrar pra botar o papo em dia quando eu voltar. :) super beijo,

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  2. Muito profundos seus relatos.
    Consigo daqui sentir, quase tocar, essa energia.
    Obrigado.
    Ajuda é ajuda, independentemente da sua auto-sugerida posição "superior". Talvez não seja a melhor forma de ajudar, mas decididamente é uma delas e é melhor que nenhuma.
    A perfeição vem como tempo e a prática. Assim como treinamos para sermos melhores em nossos ofícios, hobbies, precisamos treinar nossos sentimentos, nossa sensibilidade.

    E que forma melhor de fazê-lo, se não ajudando da forma que podemos e sabemos naquele momento.

    Seu coração e sua atenção para com o mundo vão sempre te mostrar o caminho.

    Estou aprendendo muito com vocês. Obrigado.

    Beijos carinhosos do Brasil.

    Markus

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    1. Markinhus, grata por compartilhar suas profundas reflexões. Tenho refletido muito sobre esse tema ultimamente, e estou percendo que existe um lugar de onde fazemos o que fazemos que pode vir de um lugar de ajuda, que desempodera o outro e gera dependencia, ou de um lugar de serviço, mais humilde, onde somos irmãos e apoiamos uns os outros na jornada da vida, em alguns momentos ajudamos, em outros somos ajudados e desse lugar, é um lugar de empoderamento de ambos, uma troca. Ainda estou refletindo se qualquer ajuda é boa, porque o que tenho visto na Africa é que a ajuda humanitária é demasiada aqui, mas de verdade, não ajuda em nada e no fim acaba atrapalhando, reforçando um ciclo de dependência, desempoderamento e corrupção. Sigo na reflexão. Super beijo com mta saudade

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  3. Amados, Namaskar! Estamos felizes pela jornada de vocês estar sendo profunda e rica. Empatizamos e estamos também mergulhando nessas reflexões, provocadas por vocês. Obrigado pela sinceridade e amor com que estão compartilhando seus passos. Saudades! Beijão, Guga e Rafa.

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    1. Namaskar maninho! Estamos sentindo muita falta de vocês e com muita vontade de compartilhar mais. Um super beijo com amor,

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