Pesquisar este blog

terça-feira, 10 de julho de 2012

Segera Mission (Março/2012)

Quando estávamos planejando a nossa viagem tive uma linda visão, durante uma meditação, que a missão da minha vida era servir a humanidade, servir com amor, humildade e entrega, assim como uma mãe que serve a sua família. E enquanto minha razão tentava entender como seria isso, meu coração de longe já sabia que só precisaria se entregar, que seria conduzido ao lugar certo, no momento certo com as ferramentas que precisasse.

Um pouco antes de viajar, sentada na cozinha da casa de minha mãe, minha irmã, que estava morando no Quênia, começou a nos contar sobre uma missão que estava apoiando no meio de uma região muito pobre e seca de lá. Ela descrevia a situação da região e as lágrimas escorriam pelos meus olhos, imaginando mulheres e crianças caminhando por quilômetros todos os dias sob um sol escaldante, para pegar água nos rios que ainda não haviam secado, ou para ir a escola, onde muitas vezes faziam sua única refeição diária, podia ver as famílias que passavam fome, porque o solo seco e árido que lhes restou já não produz frutos...

Eu escutava, imaginava e as lágrimas desciam, enquanto meu coração partido de dor com o que escutava, se questionava como ainda existe tamanho sofrimento no mundo. Como permitimos que a ganância e o egoísmo chegassem a tal ponto que alguns sofrem tantas privações a ponto de morrem de fome e sede, enquanto tão poucos são tão privilegiados com todo dinheiro e poder do mundo?

A minha dor foi se transformando no desejo de fazer algo para mudar essa realidade e enquanto nos preparávamos para a viagem, o rostinho das crianças e das mulheres que conheceria não saiam da minha imaginação e nem a pergunta de como poderíamos melhor servi-los no tempo em que estivéssemos lá.

Segera Mission, a missão que minha irmã descrevia, foi uma missão que começou e continua servindo a várias comunidades no Quênia por amor. Há 10 anos, um reverendo americano da igreja batista, Carlton Gleason, quando viu a realidade dessa região resolveu vender tudo o que tinha nos Estados Unidos e começar essa missão para ajudar as comunidades locais, formadas por tribos das etnias Turkana, Samburu e Massai no Centro Norte do Quênia. Tribos que são em sua maioria pastoralistas e não tem acesso a educação, água limpa e cuidados médicos.

De sua entrega nasceu uma clínica médica, única na região, que atende 10.500 pessoas por ano, tratando e prevenindo a desnutrição infantil, distribuindo alimentos para famílias abaixo da linha da miséria, tratando das doenças mais comuns até HIV, acompanhando gestações e promovendo orientações de saúde e planejamento familiar.

E seu sonho continuou crescendo. Logo a missão abriu uma escola e muitas das crianças que não podiam estudar, ou porque as escolas eram poucas e distantes de seus vilarejos, ou porque precisam trabalhar para ajudar as famílias puderam começar, e hoje já são 180 estudantes. Aos poucos, por necessidade, também nasceu um orfanato para crianças que ou perderam seus pais ou não tinham como ser sustentadas por suas famílias, hoje 15 crianças, e mais tarde também um programa de treinamento técnico para mulheres da região, possibilitando fontes de renda alternativas para as famílias.

Quando chegamos lá pudemos sentir o amor e entrega genuínas da equipe para a missão. Fomos muito bem acolhidos por Faith, que desde o início foi o braço direito da missão, mulher guerreira, mãe do orfanato, pregadora da palavra de Deus, cuidadora e anfitriã dos visitantes.

Conhecemos os enfermeiros da clínica e o bonito trabalho que tem feito em orientar e cuidar das famílias, os professores e as crianças que nos receberam de corações abertos e curiosos para entender mais sobre o nosso país, e as crianças que vivem no orfanato que com muita alegria nos fizeram parte de seu dia a dia.

Visitamos alguns dos vilarejos que a missão atende, vimos a miséria, o sofrimento e a fome de muito perto, conhecemos pessoas incríveis, com uma enorme força de vida, muita fé e uma dedicação intensa em sustentar a vida de suas famílias dia após dia.


Fiquei profundamente tocada por tudo isso, e minha perspectiva de vida e de mundo foi mudando completamente, me fazendo mergulhar numa profunda reflexão sobre as consequências, as vezes distantes de nós, as vezes invisíveis a curto prazo, de muitas das decisões que tomamos como humanidade por ganância e inconsciência nos últimos séculos.

O Quênia, como a maior parte dos países Africanos, sofreu um processo de colonização devastador, uma região composta por diferentes tribos, culturas que viviam em harmonia com a natureza por milhares de anos, com muitas riquezas naturais, se transformou num país com muita pobreza, escassez de recursos e conflitos econômicos, políticos e sociais.

Os árabes, os portugueses e os ingleses viram uma terra com muitas oportunidades para explorar, chegaram sem pedir licença, ocuparam seu território, usaram sua força militar para expulsar os nativos de suas terras e escravizar seu trabalho, usaram seu solo fértil para plantar e exportar a colheita, sangraram o ouro de sua terra, devastaram suas florestas, mataram seus animais para comercializar marfim e couro e forçaram o restante da população a procurar trabalho remunerado através da cobrança de impostos sobre suas cabanas, viabilizando assim mão de obra barata para o desenvolvimento econômico da colônia.

Seu território foi delimitado na conferência de Berlim, em 1884, onde líderes Europeus se encontraram para traçar o futuro do continente Africano sem a participação de nenhum de seus líderes, trançando fronteiras de acordo com seus interesses políticos e econômicos, criando países que separaram mais de 177 etnias culturais, misturam etnias pouco compatíveis que geraram muitos conflitos, enquanto criaram alguns países, como o Gabão, que mal conseguiram se constituir como unidades econômicas viáveis. E continuaram a governá-los para serem uma extensão do território Europeu.

No fim, quando os países Africanos conquistaram sua independência, com muita luta, como o Quênia, os governos colonizadores se retiraram, deixando para trás um legado de exploração, um território com uma pequena parte das riquezas naturais que possuía e um povo oprimido por muitas gerações. E as consequências desse processo é muito visível nos vilarejos que visitamos e reforçado tanto pelo governo ditatorial e corrupto, que se instalou desde a independência, quanto pela indústria de ajuda internacional, instalada massivamente no país.

Muito da história Africana não é distante da nossa história Brasileira, mas hoje vivemos destinos diferentes e um dos aspectos que me parece definitivo nessa diferença é: quando ficamos independentes como nação, no Brasil, a maior parte da nossa população nativa já havia sido dizimada e a população que restou era descendente européia, já parte do sistema político-econômico e social que foi implantado no país, assim quando ficamos independentes não foi muito difícil dar continuidade a ele. No entanto na Africa, a independência foi um processo de retorno da nação ao seu povo nativo, após um processo de construção social que foi alienígena a sua cultura, história e modo de vida. Os europeus chegaram, exploraram e trouxeram consigo seu modo de vida, impondo-o aos nativos, tornando-os dependentes desse modo de vida, mas depois partiram e deixaram os nativos a mercê de um sistema político-econômico-social que não lhes pertencia culturalmente, e eles já não mais podiam retornar ao seu modo de vida anterior, e também não conseguiram operar nesse novo sistema.

E considerando tudo isso, tem uma pergunta fundamental que não quer calar. Qual seria um sistema político-econômico-social que nos permitiria viver de uma forma ecologicamente sustentável, economicamente justa e socialmente digna? Muitos buscam respostas para essa pergunta, alguns a ignoram, mas por tudo que tenho visto, o sistema imperialista americano/europeu que vivemos em grande parte do mundo hoje já mostra seus limites e não está mais 'funcionando'. Ele trouxe benefícios e desenvolvimento para alguns, mas trouxe devastações ecológicas, econômicas e sociais para muitos outros. E qual ou quais seriam 'sistemas' que funcionem?

Algumas das comunidades nativas que conhecemos operavam ou ainda operam em harmonia com o ambiente em que vivem, mas na maioria das cidades que passamos, essa harmonia se perdeu e começa a ficar cada vez mais claro a necessidade de mudança em nossa forma de operar. Sem respostas, mas com muitas reflexões e idéias, duas questões tem ficado cada vez mais claras para mim para viabilizar esse processo de mudança: uma é a importância dos adultos, principalmente das mulheres, como chaves no processo de mudança social, pois somos nós quem criamos as futuras gerações na maioria das culturas, e por isso temos uma grande responsabilidade em manter ou mudar a cultura em que vivemos, através de nós mesmos. A outra é a importância das crianças que serão as futuras gerações, e por tanto, além da família, o papel da escola que tem 'educado' nossas crianças.

E em meio a todas essas perguntas e reflexões, estávamos em Seguera Mission, uma das organizações tentando minimizar alguns dos impactos gerados pela colonização no Quênia, através do cuidado com a saúde e educação das famílias de algumas das tribos mais pobres do país.

E seguia com a pergunta de qual seria nossa melhor contribuição, conectando tudo isso?

Mas antes de terminar o pensamento, quando me dei conta, já estava completamente envolvida num trabalho de "empoderamento" das mulheres nas comunidades ao redor de Segera Mission, e a minha irmã, o Thomas e eu nos envolvemos num trabalho para apoiar os professores da escola de Segera, atuando assim em dois pontos críticos para mudança social na região.

Como mulher, fiquei profundamente tocada com as condições das mulheres em grande parte do Leste da Africa, por onde estivemos, e especialmente nas tribos do Quênia, onde poucas são as mulheres que tem o direito de escolha, poucas podem estudar, a minoria escolhe seu marido ou quantos filhos terão, são elas quem sustentam a casa e fazem todo trabalho pesado de manutenção, muitas sofrem violência doméstica, e em muitas tribos as mulheres são circunscizadas ainda meninas.

Minha dor ao testemunhar isso não pôde se calar. O que impede algumas de nós de enxergar o seu valor e lutar por uma vida mais digna e igualitária? O que faz algumas de nós sofrer calada, nos sentir inferiores e abaixar a cabeça? Por que nos ensinaram assim? Por que não estudamos? Por que temos medo? Por que?

Com essas perguntas todas pulsando em mim, quando fomos visitar algumas das tribos, a Faith, sabendo do meu desejo em fortalecer as mulheres, me convidou para puxar conversas nos grupos de mulheres. Fiquei surpresa e sem saber o que fazer ou falar, mas simplesmente me entreguei ao grande presente que me foi apresentado, escutei as mulheres e compartilhei, mais do que minha experiência e o que alguns grupos de mulheres estavam fazendo para endereçar questões semelhantes, compartilhei o amor e a admiração que sentia por elas, a força que a união de um grupo de mulheres tem.

Foram momentos de muita transformação, amor, confiança e entrega para todas nós. Nos emocionamos, em alguns momentos desmontei de tristeza e em outros transbordei de alegria. Juntas vivemos espaços de profunda troca e aprendizado sobre o feminino e sobre nós mesmas. Percebi que acima de tudo, independente de onde nascemos, somos parecidas, vivemos desafios e questões muito semelhantes, por mais que elas tenham roupagens diferentes.


E com os professores tivemos experiências de muita inspiração e esperança também, nos fazia muito sentido estar com eles e compartilhar experiências e seguimos nossa intuição. Escutamos suas percepções sobre a educação das crianças em Segera, refletimos sobre a importância de seus papéis na vida dessas crianças, seus sonhos e os desafios que enfrentam. Algumas questões muito semelhantes as que vivemos no Brasil emergiram, o sistema de ensino no Quênia traz uma educação bastante engessada, herdada da colônia inglesa, uma educação que 'ensina' pela memorização de conhecimento, preparando as crianças para trabalhar num mercado de trabalho nas cidades, que não poderá acolher a todas elas, e é muito distante de suas realidades, e no fim acaba por distanciá-las do trabalho no campo e de outras possibilidades de trabalho que desenvolveriam suas comunidades e o lugar de onde vem seu sustento atual. Além disso a falta de recursos, de formação e ferramentas para fazer diferente pesa muito na auto-estima e na capacidade de fazer algo diferente do estabelecido para esses professores.

Compartilhamos algumas experiências de 'educações' alternativas, focadas nos alunos, no empoderamento das crianças, em fortalecer a autonomia, criatividade e o desenvolvimento de valores. Experiências que começaram com um sonho e poucos indivíduos que acreditaram nele, falamos sobre as nossas inspirações, conversamos sobre as limitações e sobre as possibilidades que nasciam da união desses professores por um sonho comum e como juntos eles eram mais fortes para realizar seus sonhos.

As soluções não são simples, não sei o que de fato pudemos contribuir para 'empoderar' essas mulheres e professores e o impacto que isso terá ao longo dos anos nas comunidades. E talvez nunca saberemos. Mas o que realmente importa foi o que pudemos viver juntos, a pequenina semente que plantamos, a transformação que cada um de nós viveu nessa jornada.

Saí de Segera com muito mais do que pude oferecer, jamais esquecerei o sorriso maroto no rostinho das crianças, a gratidão no olhar das mulheres que conheci, o grande coração da guerreira Faith que tão bem nos recebeu, e o sonho dos professores, que dedicam seu trabalho para cada uma das crianças que lá estão.

E isso tudo me mostrou, ainda mais, que quando nos entregamos de coração para servir ao próximo, somos simplesmente um canal para levar aquilo que é necessário, no momento em que é preciso, não controlamos nada, e é a nossa entrega, dedicação e amor que se multiplicam nos corações daqueles que as recebem e mais ainda em nossos.

Com amor,

Narjara