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quarta-feira, 7 de março de 2012

Quanto vale uma mulher?

O que é ser mulher? Qual o papel do feminino na sociedade e na família? Qual é a dança entre o feminino e masculo dentro de cada um de nós e no mundo? Essas são velhas perguntas que reacordaram em mim desde que cheguei aqui em Kufunda, no Zimbabwe.

Para compartilhar com vocês um pouco da realidade por aqui, vou contar uma história fictícia, baseada na combinação das diferentes histórias que escutei.

Era uma vez uma garotinha de 8 anos, chamada Nyarai. A terceira de cinco filhos, a mais velha de duas meninas de uma família pobre, que vive num vilarejo em Zimbabwe cultivando milho. Desde já ela trabalha pra ajudar a família com as tarefas domésticas, lava roupa, ajuda a mãe a cozinhar, limpa a casa e ajuda a cuidar dos irmãos. Além de tudo isso, ela também vai pra escola, afinal sem educação não conseguirá ser ninguém no futuro.

O tempo passa e Nyarai vai crescendo e aprendendo tudo o que sabe na convivência com a família, com as pessoas no vilarejo onde vive e com as outras crianças na escola, que é o que ela mais gosta.

Ir pra escola, apesar das longas caminhadas, é poder mergulhar um pouco em seu próprio mundo, sem precisar ter nenhuma responsabilidade, sem precisar cuidar de tantos afazeres domésticos. Para ela, é um tempo que é só seu, para conversar com os amigos, aprender e se divertir.

Mas o tempo passa rápido, logo Nyarai está com 17 anos, terminando a escola. Como sua família não poderá ajudá-la a pagar o ensino superior e ela precisa trabalhar pra ajudar a família, Nyarai não vai conseguir fazer faculdade. É uma frustração, mas ela sempre soube disso, ainda mais porque sempre quis ter uma família e para isso logo se casará e terá filhos e aí, os estudos ficariam em segundo plano de qualquer forma.

Mas sem ter nem muito tempo pra pensar nisso, um garoto do vilarejo se apaixona por ela e vai até sua família pedi-la em casamento. Ela realmente ainda não se apaixonou por ele, mas ficou lisongeada com o pedido, agora seu sonho de ter uma família está muito perto de acontecer.

O garoto, Bongo e sua família, vem economizando para o casamento, já que eles precisará pagar lobola, um dote em dinheiro, para a família da noiva. A família da noiva celebra, pois esse dinheiro será muito bem-vindo nas condições em que estão atualmente.

Quando finalmente ele consegue pagar, eles se casam. Agora um laço bem maior que o matrimônio os une, junto com o casamento uma herança cultural bem antiga de seus ancestrais pesará sobre seus ombros e sobre sua família. Ele passa agora a ter uma obrigação eterna de ajudar a família dela, e ela vira 'escrava' não só do marido, mas também da família dele.

A irmã de seu pai é quem a ensina como se portar com o marido, todas as necessidades dele e suas obrigações como esposa, mas nenhum só direito. Ela teme o que vem pela frente por todos os exemplos que já viu, mas sente que esse é o seu destino como mulher, mãe e esposa. Assume seu lar com coragem e dignidade, e enquanto o marido trabalha pra sustentar a família ela cuida de todo o resto.

Logo vem o primeiro filho, Nyarai está cansada com as noites em claro e todo o trabalho da casa. Ela não quer ter relação com o marido e as brigas começam. Ele joga na cara dela o quanto pagou por ela, justificando que ela é obrigada a serví-lo por isso. Tsitsi chora perante a impotencia que sente diante da situação. Ele fica agressivo e ela se rende com medo de que possa ficar pior.

Ela passa muito tempo com o bebê, o dinheiro que Bongo ganha já não está sendo suficiente pra sustentar a família e por pressão ele começa a cobrar mais ainda dela, que já cuida da casa, da roupa, da comida, do filho e ainda cumpre com os deveres de esposa as noites.

Ela se vê obrigada a trabalhar pra contribuir também, se não vão passar fome. Ele se sente sobrecarregado com a responsabilidade da casa, não se sente feliz, mas esse modelo de ser homem e marido, é o único que ele conhece e que tem estado na família há muitas gerações.

Passado o tempo vem o segundo, o terceiro e quando chega o quarto filho, ela vai testar HIV antes do parto e descobre que é positivo. Seu mundo desmorona ao mesmo tempo que descobre que sua contamição se deu por causa da traição do marido.

Com raiva, medo e indignação, sem saber como agir, ela procura sua mãe, que lhe diz claramente que tem que continuar sua vida com o marido, se não envergonhará a família. Tsitsi não tem o direito de se separar perante essa cultura, a única forma é se o marido quiser.

Ela tenta se separar dele e sai de casa, mas como ele não quer, a família fica contra ela e já não pode se relacionar de novo, até que ele lhe dê um distintivo que está divorciada, o que ele não vai fazer.

Sem o apoio da família nem da sociedade, ela vira mãe solteira, e agora é completamente excluída, mal vista e rejeitada pela sociedade e pela família, sobrando-lhe poucas alternativas para sustentar sua família, que não virar prostituta.

Sua tia lhe acolheu em sua casa, mas disse que precisaria sustentar seus filhos e Tsitsi está determinada a sustentar sua família começando a vida na prostituição, quando encontra um grupo de mulheres solteiras e começa a participar dele.

As mulheres se organizam juntas para lavar e costurar, assim conseguem uma renda para suas famílias. Além disso, Nyarai encontrou muitas histórias parecidas com a sua e descobriu que é alguém e que continua tendo valor, mesmo com tudo que lhe aconteceu. Ela encontrou um grande amparo e suporte emocional em estar com essas mulheres, compartilhando suas histórias de vida e vislumbrando uma esperança para o futuro.

Assim Nyarai começa a se descobrir mulher, a conectar a força e com a beleza que tem e não sabia, começa a redescobrir seus sonhos e desejos. E um botão de rosa quase murcho, desabrocha numa linda rosa vermelha, incentivando outras rosas a fazerem o mesmo.

Essa história representa bastante o lugar da mulher e seus dilemas hoje na sociedade Zimbabweana. Ambos mulheres e homens parecem inconscientemente viver os mesmos papéis que seus ancentrais viveram, renovando a roda da cultura e da submissão a cada geração.

As histórias e depoimentos que escutei são de partir o coração de uma mulher brasileira que tem a liberdade que eu tenho e provocam uma profunda indignação por um lado, e uma profunda reflexão por outro. As mulheres no Zimbabwe tem uma força incrível, mas muitas vezes por medo calam e engolem sua voz e sua expressão.

Medo de quê? Porque cada uma dessas pessoas, mesmo não sendo de acordo, seguem mantendo essa cultura viva geração após geração?

E o que tenho descoberto é que a maioria ainda atribui isso tudo a cultura, como se fosse algo fora deles, aí o poder de ação é quase nenhum, pois já não depende de cada um. Mas o que é a cultura se não os valores e comportamentos que escolhemos reproduzir ao longo do tempo?

As mulheres tem e criam seus filhos, possuem um grande poder de transformação nas mãos e escolhem seguir com a cultura. Conversei com muitas mulheres por aqui e descobri que existem muitos mitos e crenças por trás de tudo isso, baseados no medo, fazendo com que a cultura sobreviva.

Por exemplo, lobola, o dote do noivo pra família da noiva, era uma forma do homem provar a família da noiva que era capaz de cuidar dela, na maioria das vezes isso representava caçar um animal ou algo do genero. Hoje, muitas famílias se aproveitam disso para 'explorar' os futuros genros, pedindo quantidades de dinheiro.

Eles acreditam que se não pagarem, a família terá má sorte e assim o ciclo se mantém, ambos cumprindo o destino que a cultura lhe impõe sem saber exatamente o que isso significa, o homem sentindo-se o dono da mulher, porque teve que pagar por ela, e a mulher se submetendo a sua ilusão da não escolha, porque foi criada pra obedecer e se não o faz é rejeitada pela família. E assim o ciclo perpetua.

E a pergunta que não quer calar, as famílias estariam dispostas a não cobrar por suas filhas pra quebrar esse ciclo? Nenhuma das mulheres conseguiu responder essa pergunta prontamente.

Fica a pergunta, quanto vale a dignidade de uma mulher? Será que as pioneiras de Kufunda conseguirão gerar um movimento que coloque fim a esse ciclo destrutivo, preservando só o melhor dessa cultura?

Talvez o rabino Pinchas de Koretz tenha razão quando diz: "Quando uma pessoa tem medo de alguma coisa, ela é, na realidade, subjugada a essa mesma coisa. Temer é fazer acontecer inúmeras vezes aquilo que se teme. É nos temores que estão as chaves para compreender nossa crença mais profunda."

No mais profundo do meu feminino,

Narjara

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