Sentados em um ônibus velho, com pessoas esmagadas em todos os cantos, olho pela janela e vejo cenas familiares, mesmo nunca tendo passado por aqui. Pequenos barracos de madeira, enfileirados lado a lado na beira da rodovia, coloridos e empoeirados - mercado, hotel, farmácia, bar, cabeleireiro, escola, igreja - tudo com um ar velho, quase medieval, a versão tribal dos shopping centers. Pessoas com roupas coloridas, mulheres carregando bebês nas costas, meninos tocando cabras e vacas. O ônibus encosta e é imediatamente cercado de mulheres com cestos na cabeça, batendo nas janelas vendendo de tudo - bananas, pregadores de roupa, tomates, sapatos, créditos de celular (sim, se há um sinal de modernidade que está presente em todos os lugares que passamos são os celulares baratos). Todos aqui buscam desesperadamente um nicho para conseguir ganhar a vida. O motorista acelera, e alguns metros a frente vemos algumas mulheres Maasai carregando enormes fardos de madeira na cabeça, indo em direção a vazia savana. Em algum lugar no meio dessa vastidão - pode ser logo ali depois do morro ou algumas horas de caminhada - um bando de crianças espera em uma cabana feita de gravetos, barro e esterco pela sua refeição que precisa ser cozida com a madeira. Elas caminham de cabeça erguida, com orgulho e sorriso no rosto.
Estamos na Tanzania, a caminho de Arusha para Karatu, uma pequena mas movimentada cidadezinha nas montanhas, o lugar mais próximo de Ngorongoro, uma cratera de vulcão extinto. Esse é um famoso destino de safari, pela sua beleza e grande concentração de animais. Nas temporadas hordas de turistas, principalmente americanos e europeus, inundam essa região, em busca de uma linda foto de um leão, rinoceronte ou girafa. Sorte nossa que é baixa temporada. Vamos tentar achar uma forma de visitar esse lugar incrível sem pagar os preços exorbitantes dos safaris nas companhias de turismo.
A língua franca em boa parte do leste da África é o Swahili, que nasceu da mistura de línguas tribais locais com árabe, com os séculos de influencia dos mercadores - de marfim, escravos, especiarias - que povoaram a região costeira. Mais um sinal da diversidade cultural e étnica desse continente. "Safari" em Swahili significa literalmente "jornada". Com o turismo, acabou assumindo outro significado - um bando de wazungo (brancos) apertados em um carro procurando leões. Mas se olharmos para o significado original da palavra, é exatamente o que estamos fazendo, uma jornada... um safari de aprendizado.
Chacoalhando no ônibus continuo a observar as pessoas e a paisagem... essa é uma região linda. Começamos a subir a encosta das montanhas cobertas de florestas, uma incrível vista do Lago Manyara se revela ao nosso lado. Vejo as pessoas apertadas no ônibus, e muitas cenas do nossos dois meses de "safari" passam pela minha cabeça.
Lembro de alguns momentos no Zimbabwe, das nossas viagens de matatu (lotação) pelas vilas rurais. Não consigo esquecer das plantações de milho... não que milho seja algo muito marcante. Mas até em Harare, a capital do país, vimos pés de milho nos lugares mais inusitados: em calçadas, praças, jardins das casas de classe média... em praticamente qualquer pedaço de chão livre. Com o colapso econômico em 2009, as pessoas aprenderam a sobreviver por conta própria. Sem comida nos mercados, com cortes constantes de água e eletricidade, não tiveram outra escolha. Isso me faz refletir sobre o que é realmente importante na vida. Tantas vezes esquecemos do milho.
Próxima cena passa pela minha cabeça: estamos sentados dentro de uma pequena cabana de barro e esterco, na savana do Kenya. A cabana é muito escura, quase não percebemos o escaldante sol o lá fora pelas duas minúsculas janelas, não mais que pequenos buracos. O teto é tão baixo que mal é possível ficar de pé. Estamos sentados em uma cama feita de gravetos e couro de vaca - colchões, travesseiros e cobertores são luxos que não fazem parte da realidade aqui. A nossa anfitriã, uma mulher Samburo, esquenta água para o chá em uma panela amassada sobre uma pequena fogueira no chão de terra batida. A fumaça se acumula com a falta de ventilação, tornando o ar pesado e difícil de respirar. O ambiente é quase sobrenatural, mágico... O que mais chama a atenção é o sorriso e o orgulho dela, está muito feliz e honrada por nos receber como visitantes. A luz que irradia, torna todos os outros detalhes quase insignificantes.
Mais uma imagem... estamos sentados em um sofisticado restaurante tailandês, no rico bairro de Sandton, nos subúrbios ao norte de Johannesburg. A praça chamada "Nelson Mandela Square" a nossa frente é rodeada de hotéis cinco estrelas, prédios envidraçados e um shopping center com lojas de grife. A nossa volta pessoas com seus iPhones e óculos Ray-Ban conversam animadas ao desfrutar seus deliciosos pratos. Esse é um ambiente familiar, podia ser qualquer shopping em São Paulo... Mas os dois meses que nos separam desse momento fazem com que seja uma memória distante, claramente uma exceção nesse continente sofrido. O milho e a cabana passam pela minha cabeça novamente. Quantos contrastes!
O ônibus pula em um buraco, e por um instante lembro que estou na Tanzânia. Todas essas cenas e memórias estão se misturando em um borrão. Parece que de estou começando e ter uma sensação do que é o espirito da África, a essência por traz das formas. Acho que é por isso que as imagens na janela parecem tão familiares... padrões comuns que se repetem no meio de tanta diversidade. A resiliência, perseverança, alegria, simplicidade, sofrimento, fé, presença de um povo vivendo a sua vida de gado.
Aos poucos os pensamentos se esgotam e não sobra nada além do aqui e agora: o ônibus chacoalhando, a paisagem na janela, as pessoas a nossa volta apertados em seus bancos. Sinto a brisa no meu rosto, o tempo diminui de velocidade, todas as sensações se tornam mais vivas e presentes. Uma profunda sensação de alegria e gratidão inunda o meu corpo, me deixando com arrepios. Como é bom estar aqui... que presente é estar vivo! Meus olhos se enchem de lágrimas. Estou em paz, estou feliz.
Thomas
Nossa, Thomas. Dois meses na África - que presentão! Imagino que o safári deva ter sido bem marcante, profundo, transformador. Muito bacana!
ResponderExcluirOi Gabi, que legal te ver por aqui! pois é, jornada incrível, querida esta pela metade. Estamos agora em Moshi, aos pés do Kilimanjaro. Da Tanzânia ainda pretendemos ir para o Egito e para a India, pelo menos mais dois meses. Vamos compartilhando as história aqui, fique a vontade pra acompanhar. Como estão as coisas nas terras brasileiras?
ResponderExcluirUm grande abraço, Thomas
Muito bacana seu relato, Thomas! E aqui no sítio, estamos na colheita do milho!
ResponderExcluirQuando for ao Egito, não deixe de visitar a Sekem, uma fazenda biodinâmica no meio do Saara. Se quiser, passo os contatos. Grato pelo safari literário!
queridos, grata por compartilharem esta viagem de vocês! grande beijo Sheila
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